01 outubro, 2014

Memória de um idoso

Quando eu tinha lá meus 4, 5 anos de idade, fazia muito o mesmo caminho com a minha mãe. Fosse para ir à escola ou ao centro da cidade, era sempre a mesma rua a descer.
Era inevitável, afinal, nosso destino ficava no fim da "nossa rua". Descíamos sempre pelo mesmo lado da calçada e cumprimentávamos toda a vizinhança que encontrávamos pelo caminho: tinha a Tia Carolina, mãe do Capeta e do Limpinho (que descobri anos depois que era Olimpinho), tinha a Alice, Fernanda, a Cidinha, a Laís (outra descoberta tardia: era Alaís), a Adair... E muitas dessas pessoas, além de outras que não citei, fizeram parte da minha vida diária por anos a fio.
Mas a memória que me procurou hoje é uma memória sem nome. No caminho da escola, ainda numa época em que existam casas de muros baixos e jardins, havia uma casa de mureta azul e chão ladrilhado de vermelho. No jardim, sempre roseiras se destacavam e, nos dias mais quentes e ensolarados, uma senhora levava seu marido para tomar sol e ver o movimento.
Era uma senhora idosa, julgo que tinha seus 70 anos, que vivia com esse senhor também idoso, que julgo ser seu marido. Este senhor havia sofrido um derrame que lhe debilitou muito, o deixando privado de movimentação de um lado do corpo e de sua fala.
Hoje, me lembrei vividamente dele: sentado em uma cadeira, calças cinza, camisa branca e uma blusa fina decote em V azul clara. Seu inseparável chapéu cinza escuro protegia sua pele branca já maltratada pelo tempo, enquanto ele se mantinha apoiado numa bengala.
Ao passar pelo portão, creio que ensinado por minha mãe, eu acenava e dizia: "oooba!".
O cumprimento simples era o que parecia fazer o dia do velho. Ele respondia seguidamente enquanto nós andávamos com alguma pressa calçada abaixo, sua voz ainda forte ecoava em meus ouvidos por um bom tempo depois daquilo. O pouco que se podia entender do que ele dizia era "ai meu Deus".
E essa cena se repetia quase todos os dias da semana, igualzinha: o mesmo cumprimento, a mesma resposta. Parecia que era um pouco de alegria que libertava alguém preso num corpo que já não o permitia mais fazer nada que o dava prazer. E aquilo me alegrou por muito tempo. Me lembro de sair saltitante, quando bem menino, sentindo a mesma alegria que aquele homem.
Mas o tempo passou e minha rotina mudou também. A casa daquele homem deixou de ser rota obrigatória quando o portão de entrada de minha nova escola mudou meu caminho.
Passava por lá só aos fins de semana. A adolescência chegou e trouxe sua idiotice e me fez muitas vezes ter vergonha daquilo. Não sei por que, mas era algo assim. Minha mãe, meu irmão e eu mudamos para o outro lado da rua e, como rompimento com a vida pesada que levávamos na antiga casa, passei a usar a nova calçada de minha vida para ir ao centro.
O senhor me via, ao longe, inalcançável pela distância e devia se perguntar por que eu já não o cumprimentava mais. Era notável a tristeza em sua voz em alguns momentos, já sem o mesmo vigor.
Caí em mim alguns meses depois e voltei a cumprimentar aquele amigo, mesmo que de longe. A vida já exigia rotinas mais pesadas, e nossos encontros foram senso casa vez mais escassos e raros.
Não sem surpresa, um dia passei por sua casa e ela deixara de existir: alguém comprou o terreno e demoliu q construção.
Foram-se as rosas, a cadeira que por tanto tempo amparou aquele senhor e, antes de tudo, foi-se o casal. A senhora de sorriso tímido que sentia a felicidade de seu companheiro a cada aceno e ele, que apreciava a rápida companhia de um menino, que foi um adolescente bobo, mas volta hoje para reconhecer o erro com a certeza de ter se tornado um homem que seria respeitado por aquele idoso.
Sei que o tempo não deve ter permitido que eles estejam vivos até hoje, então, considero este texto uma prece por duas pessoas que, sem saber, me fizeram aprender muito.
Sua memória, um pedacinho dela, vive em mim.

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